Renato Lopes

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Viagens e Aventuras


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Costa a Costa da América Latina - Iron Butt Association - LA - 50cc - 2006

Costa a Costa da América Latina - Iron Butt Association - LA - 50cc - 2006

Costa a Costa da América Latina – Iron Butt Association – LA – 50cc
Do Pacífico ao Atlântico em 50 horas - Chile – Argentina – Uruguai – Brasil


Caros leitores,

No dia 15/03/2006, chegamos em Santiago, no Chile, onde demos por encerada a nossa viagem pelo Cone Sul. Assim, depois nos instalarmos adequadamente com um banho merecido por termos concluído com êxito a primeira parte da viagem, estávamos prontos para procurar um bom lugar para o jantar.
Eu queria fazer uma reunião ao redor dos mapas de que dispunha, para passar as informações e orientações sobre o nosso novo desafio que deveria iniciar no dia seguinte, às 6 h. A realização da prova cost to cost da Iron Butt Association.
O desafio que tentaríamos a realizar era a prova de costa a costa na América Latina, que consiste em um percurso do Pacífico ao Atlântico ou, vice-versa, em menos de 50 horas ininterruptas e passando por quatro países.
Ainda no salão do café do hotel, passei todas as informações sobre a documentação necessária como comprovante de partida e chegada, com todos os dados e necessidade da assinatura de duas testemunhas; se a testemunha for policial, uma seria o suficiente; comprovante eletrônico de postos de combustível ou restaurante, com data, hora, quilômetro do odômetro, placa da moto, nome do piloto, endereço e assinatura do atendente; mapa com itinerário percorrido, distâncias e ano da edição; formulário padrão do IBA devidamente preenchido, inclusive com as testemunhas da partida e chegada; carta relato da viagem; cópia da identidade, habilitação e documento da moto.
Em primeiro lugar, entreguei a cada parceiro um quite completo com os formulários, os quais eu já havia preparado e uma cópia do roteiro.
No segundo momento, mostrei o roteiro que havia planejado com as paradas para abastecimento, os pontos críticos, o trecho noturno, enfim, tudo sobre o percurso. Tentei passar a experiência de duas provas desse tipo de desafio, que já havia realizado, o tempo das paradas, a velocidade necessária, os cuidados, o cansaço inevitável, o tipo de alimentação adequado e tudo mais que lembrei. Os dois parceiros reafirmaram convictos e entusiasticamente a sua intenção de fazer a prova. Combinamos então que, se algum integrante por alguma razão, necessitasse interrompê-la, os outros estavam liberados para seguir e completá-la, tão logo o parceiro estivesse em local seguro. Mas tentei passar confiança aos amigos, pois pela viagem que acabávamos de realizar, todos nós tínhamos plenas condições de concluí-la com sucesso.
Depois que ajustamos todos os detalhes, inclusive como acomodar nossas bagagens e pertences que realmente utilizaríamos no percurso, para que ficasse em compartimento de fácil acesso, saímos para jantar.
Retornamos ao hotel às 23 h, o tempo passava e eu não conseguia dormir direito. Entre um dorminhar e outro, passo e pensar na viagem, rever mentalmente todo o planejamento que fiz, os detalhes. E assim foi, uma noite de sono muito agitada. Fiquei a imaginar possíveis situações de quebra, desistência por cansaço físico e mental, como agiria, como decidir o que fazer, como seria ter de deixar um parceiro depois de muitos dias juntos, tudo passava pelo meu pensamento e afugentava o sono.
Em meio a todos esses pensamentos, acabei me entregando ao sono.
Na manhã de 16/03/2006, acordei um tanto sonolento, às 5 h, com o telefone chamando, mas só fui despertar realmente lá pelas 5 h 10 min. Penso que não consegui dormir mais do que quatro horas, e isso não era um bom sinal. Resolvi tomar uma ducha rápida antes do café. Descemos para o salão do café às 5 h 30 min e lá estava tudo preparado como prometera a Geraldine, recepcionista do hotel, na noite anterior, quando fechamos a conta, pois nossa previsão era dar a partida às 6 h.
Rapidamente carregamos as bagagens com o auxílio do recepcionista e deslocamo-nos para a estação de serviço da COPEC, na Avenida Beira-Mar, local escolhido, no dia anterior, para nossa partida por ser uma das principais saídas da cidade.
Antes de abastecermos as motos, ainda compramos água, alguns cereais e chocolate como suprimentos de emergência. Começamos a fazer o abastecimento e registro dos dados para a largada da prova com a adrenalina nas alturas, enquanto nos revezávamos no registro fotográfico da nossa saída de Viña del Mar. Depois que se abastece a moto, e é impresso o ticket ou nota, o tempo passa a contar do horário que está registrado. Fui o último a abastecer, meu horário marcava 5 h 58 min, e o odômetro marcava 22.417 km. Eu teria, a partir daquele instante, 50 horas para chegar até a Praia do Cassino, na cidade de Rio Grande, no RS.
O percurso projetado para o desafio costa a costa partia de Viña del Mar, Hijuelas, Los Andes e Túnel Cristo Redentor, no Chile. Mendoza, São Luis, Vila Mercedes, Rio Cuarto San Francisco, Paraná e Colon, na Argentina. Paysandu, Lorenzo, Tacuarembo e Riveira, no Uruguai. Santana do Livramento, Don Pedrito, Bagé, Pelotas, Rio Grande e Praia do Cassino, no Brasil, com estimativa de 2.391 quilômetros.
A temperatura, na madrugada, à beira do Pacífico, era muito fria, exigindo todo o nosso equipamento de proteção para clima frio. A noite estava escura e zero de movimento nas ruas e avenidas. Últimos ajustes nas roupas e equipamentos e lá vamos nós rumo ao oceano Atlântico de volta para casa com mais uma aventura.
A partida foi diferente das outras. Nessa estávamos sós, sem a torcida da família, a solidariedade, a vibração e a energia dos amigos, mas o nosso entusiasmo era a fonte para suprir tudo isso.
Seguimos pela avenida, sempre à beira-mar, alcançamos a estrada que também acompanha o Pacífico até Concón e encontramos a pista molhada e com muitas ondulações. Pouco antes da cidade, deparamo-nos com um acidente, provavelmente ocorrido há pouco tempo, pois a Polícia ainda realizava o levantamento técnico no local, com o trânsito somente em uma pista. Continuamos com cuidado naquela pista estreita até pegarmos a Ruta 60, que estava um pouco melhor. Nesse trecho até Quillota, perdemos um bom tempo, por conta da estrada e da cautela de início de viagem. Eu, não sei o porquê, demorei um pouco mais para entrar no ritmo que a prova exige. Talvez a noite mal dormida. E nisso eu não queria pensar naquele momento.
Quando o dia começa a amanhecer, estamos chegando a La Cruz e já era possível avistar a Cordilheira do Andes em meio a tantas curvas, descidas e subidas naquela estrada estreita, embora com bom pavimento e pouco tráfego. Essas condições nos forçavam a manter uma velocidade um pouco moderada. É incrível como alterou minha forma de pilotar e ver os lugares e paisagens. Estava mais concentrado no objetivo da prova, talvez, porque a adrenalina ainda estava a mil. Mas ter de cruzar a Cordilheira novamente tinha de ser especial e, mais ainda, por um percurso totalmente diferente e desconhecido. Precisava voltar a curtir a viagem, ao menos, nas regiões que não havia rodado ainda, como estas.
Eu não conhecia a região e a estrada, mas continuava à frente, como o combinado na noite anterior, para ditar a tocada. Sabia que estávamos só iniciando a prova, mas eu estava com muita confiança de que poderíamos chegar ao final da prova com um tempo bem inferior ao máximo permitido, mas para isso dependeria muito da agilidade das aduanas e da travessia da Cordilheira, visto que, por toda a viagem, conseguimos andar muito bem e juntos.
Minha expectativa era concluir a prova em até 40 horas. Essa estimativa de cálculo baseava-se fundamentalmente na prova anterior que realizei, onde percorri 2.429 km, em 32 h 27 min, incluindo uma parada de 2 horas.
Quando passamos a Praça de Pedágio na Ruta 5, o relógio marcava 7 h, e foi o momento em que já comecei a fazer cálculos e projeções, coisas que vinham a minha cabeça, mas que não tinham importância. Eu estava consciente de que a passagem pela Cordilheira seria o mais crucial, por isso previ a partida pela manhã, para escapar definitivamente dos riscos inevitáveis da noite.
Após um túnel na via Panan, antes de Llaillay, retornamos à Ruta 60, agora para seguir por ela até a divisa com a Argentina. Passamos por Los Andes e, às 9 h 15 min, chegamos à localidade de Rio Branco com parada para o primeiro abastecimento do percurso. Não havia cupom eletrônico, ainda usavam nota fiscal manuscrita. Isso demorou um pouco, mais do previsto porque havia dois caminhoneiros abastecendo e também pediram nota fiscal. Aliás, no Chile não é preciso pedir, porque todo estabelecimento extrai a nota e oferece ao comprador ou tomador do serviço, independente do cliente solicitar. Bem diferente da cultura brasileira.
Na parada de 20 min, um dos motoristas de caminhão nos alerta de que a estrada está em obras, com interrupções e com alguns trechos com cascalho. Seguimos e logo encontramos a pista bloqueada, com vários carros já aguardando a liberação. Fiz um sinal aos motoristas e, vagarosamente, fui andando até chegar à ponta da fila. Estávamos na Cordilheira, e a prova não perdoa perda de tempo. Paramos e um dos funcionários da empreiteira veio conversar. A manhã continuava fria, e o sol ainda se escondia por trás das nuvens e montanhas. A sorte estava ao nosso lado e não esperamos mais que 5 min para o grupo rodar novamente por um trecho de brita molhada pronta para ser compactada.
Continuamos a subir por entre as montanhas da Cordilheira e, a cada curva que fazíamos, parece que a temperatura baixava. Tudo tinha uma explicação. Começávamos a ganhar altitude muito rapidamente, aproximávamo-nos dos pontos mais altos, e o frio se acentuava em razão dos cumes nevados das montanhas.
Não demorou muito e começo a sentir e ver os raios do sol que despontava no horizonte como um íntimo amigo da nossa eternidade. A viagem começaria a tomar um contorno mais alegre, mais leve, mais feliz, afinal, o sol passaria a iluminar nossa estrada.
Olho no painel da moto e observo que o relógio marca 9 h e 40 min. Outra vez, surgem, nos meus pensamentos, os cálculos. Desde menino gostei de cálculos, mas ali não era hora! Tínhamos percorrido um trecho com pouco mais de 170 km e gastamos 3 h 42 min. Respiro profundamente por duas ou três vezes para manter o equilíbrio e a tranquilidade. Era um absurdo, uma eternidade de tempo para rodar apenas 170 km, sem a condição adversa de chuva. Lembrei-me imediatamente do SaddleSore 1000 que realizei em 2003, quando rodei na chuva por mais de 800 km e fiz média bem superior. Mas precisava manter a serenidade, eu estava conduzindo os parceiros para seu primeiro desafio e tinha obrigação de mantê-los otimistas e motivados.
Alguns quilômetros à frente e deixamos para trás um posto policial, estávamos aos pés dos Caracolles. Um breve pit stop para um registro, aproveitando o sol e o céu de brigadeiro. Eu estava cruzando, pela primeira vez, essa sequência de curvas em ziguezague, muito badalada por viajantes. O cenário realmente é de tirar o fôlego. São em torno de 30 curvas e compõem um conjunto espetacular entre tantas montanhas rochosas, com suas fendas, entranhas e vales brancos de gelo, que insistem em desafiar o poder do sol. Não me demorei, dessa vez não foi permitido ao fotógrafo “apear“ da moto.
Pilotar nessas curvas que sobem a cordilheira em ziguezague, podendo ver o seu final no topo da montanha, é um “aperitivo” delicioso de poucos minutos, para relembrar as infindáveis e massacrantes curvas do mesmo gênero entre Cusco e Puquio, no Peru. Chegar lá no alto, a mais de 2.800 m.s.n.m., e poder contemplar aquela sequência que parece uma escada perfeita, com caminhões contornando cada cotovelo, tendo ao lado um riacho formado do degelo das montanhas, merece não uma, mas muitas fotos. Dessa vez, o grupo pára e desmonta a fim de fotografar com mais vagar. A prova pode esperar por alguns minutos. Mais tarde haveremos de encontrar muita estrada boa para fazer a possante cortar aquelas retas, típicas das rutas argentinas e fazer o coração pulsar mais forte.
No complexo fronteiriço chileno, uma parada rápida para cambiar o saldo de peso chileno por peso argentino e colher informação sobre o procedimento de saída. Recebemos orientação de que todo o processo de saída e ingresso na Argentina está integrado com o outro lado. Registramos algumas fotos da saída do Chile e a entrada do Tunel del Cristo Redentor que indicava, na placa, a altitude de 3.183 m.s.n.m. Acima do túnel, no topo da montanha, a altitude chega a 3.863 m.s.n.m.
Do outro lado do túnel e estávamos na Argentina. Logo se pode avistar, entre as montanhas, o soberano Aconcágua, o pico mais alto das Américas, com seu cume completamente branco, como a exigir um registro da expedição. Não era possível decepcionar. Eu precisava retirar o capacete e sentir o vento frio que permeia e sopra por entre aquelas montanhas dos Andes. Eu tinha necessidade de fazer parte daquela natureza. Eu precisava daquela energia, da serenidade do soberano Aconcágua das Américas que, do alto, dita o tom do sopro do vento e da sua força vigorosa e impiedosa para chegar ao cabo do meu objetivo. Embora eu percebesse, com muita clareza, a minha pequenez perto daquela grandiosa demonstração da natureza também tinha claro que esse momento de introspecção pode, sem dúvida, afastar nossos medos e revigorar a confiança para superar limites.
Dez minutos depois de rodar por muitas curvas protegidas por túneis nas encostas das montanhas do Andes, entrei no grande complexo da aduana integrada dos dois países, seguido do Alcio. Havia um veículo a nossa frente e logo fomos atendidos, primeiramente, pelos funcionários chilenos e tudo foi muito rápido. O Valmor não aparece. Comentei com o Alcio que ele deveria ter feito uma parada para fotografar o complexo, coisa que eu não havia feito. Começam a chegar muitos veículos e nós, já liberados do lado chileno, passamos para o lado argentino, onde o processo foi um pouquinho mais demorado. Um policial argentino pediu para o Alcio tirar o capacete e não gostou nada do que viu. A carteira de identidade do Alcio era do tempo que tinha cabelo. Coisa de muito tempo. Tempo de garotão! Teve que convencer que ele era ele, usando a Carteira Nacional de Habilitação. Um pouco contrariado, o policial aceita, sem antes dar uma leve “puxada de orelhas” no garoto.
Aguardamos, por algum tempo, e resolvemos seguir rodando, já que o Valmor conhecia a estrada. Na saída do complexo, tínhamos de mostrar o documento a um policial. Perguntamos, então, se havia passado um motociclista com as características do parceiro, e ele responde afirmativamente, mas logo deveria voltar, pois não passaria pela próxima barreira.
Seguimos em frente em velocidade moderada, mas queríamos rodar, vencer alguns quilômetros aproveitando o tempo. Nossa média não passava de 50 km/h, e isso começava a me angustiar.
Não demorou e encontramos o Valmor retornando. Ele nos informa que não viu o complexo fronteiriço. Eu não poderia acreditar. Era um prédio colossal e gigantesco ao lado da pista com várias placas. Claro que o cansaço, a fadiga física e mental pode desviar nossa atenção durante a pilotagem, pela diminuição dos reflexos, quando se passa a pilotar apenas pelo reflexo normal. Eu creio que não foi o caso, estávamos praticamente iniciando a prova e são essas situações que precisamos saber administrar, pois eu também sabia e sentia que a realização do desafio era possível, se nossas vontades se mantivessem unidas pelo mesmo ideal comum, o da conquista e da vitória. Acordamos que seguiríamos em frente em velocidade moderada.
Eu seguia pilotando lentamente como combinado. Alcanço um caminhão mais lento ainda e resolvo ultrapassá-lo, não observo a quase inexistente faixa dupla e faço a ultrapassagem sem qualquer risco. O Alcio não tem tempo de ultrapassar. Quando concluí a ultrapassagem, surgiu, a minha frente, um posto policial e imediatamente nos indicaram para parar. Mentalmente me preparo para sacar alguns pesos do bolso para pagar a multa. Para surpresa minha e do Alcio, o policial apenas solicita para ver o visto de entrada e não aborda sobre a minha manobra. Era um policial jovem, ele dá uma boa olhada nas motos, comenta que, há poucos minutos, haviam passado quatro motociclistas e nos libera. Agradeço e, sem muito demora, seguimos vagarosamente. Quando atingimos uma reta ainda nas montanhas, fizemos outra parada, agora para fotografar uma planície com duas cadeias de montanhas dos Andes, a segunda com seus picos nevados. Mas também para abreviar o encontro do parceiro. A paisagem era única.
Logo que passamos esse trecho muito sinuoso, a estrada começa a melhorar, mas continuávamos mantendo a velocidade “lenta”, sempre com um olho no retrovisor à espreita de ver o Valmor. Passamos por Uspallata, faço sinal ao Alcio e paro a moto no acostamento. Depois de trocarmos alguma ideia, resolvemos seguir no mesmo “tranco” de 110 km/h até Mendoza que estava distante uns 70 km, não tinha como errar a estrada, era só continuar na Ruta 7. Eu não estava gostando de não o ter no meu campo de visão pelo retrovisor e, miseravelmente, nesses momentos surgem às dúvidas. Será que estamos fazendo o certo? De outro lado, tínhamos a consciência de que tudo foi discutido e acordado. Mas a dúvida continuaria por bom tempo. Embora soubesse que ele gosta de andar rápido, não estava conseguindo nos alcançar, mesmo que estivéssemos andando em baixa velocidade. Foram momentos difíceis para mim, porque aquela preocupação permanecia rondando o meu pensamento, como se estivesse me impondo um sentimento de culpa. Mas eu estava determinado a concluir a prova, que para mim estava exatamente com um ano de atraso e todos nós tínhamos estabelecido e acordado sobre as regras, firmando um pacto de liberdade para eventual desistência sem constrangimento. Esse pensamento muito racional me impulsionava, afastando o sentimento de culpa por falta de parceria ou companheirismo. Na verdade, meu subconsciente tentava se defender.
Deixamos Mendoza para trás. Conhecê-la não estava nos meus planos naquele momento, mas sabia que um dia teria que voltar para desfrutar de suas belezas e degustar os seus vinhos reconhecidos internacionalmente. Na saída de Mendoza, no trecho de autopista da Ruta 7, paramos em uma grande estação de serviço para aguardar o Valmor. Abastecemos as motos e ficamos tentando entender o que estava acontecendo.
Não demorou muito e chega o Valmor. Ele nos relata que tendo que aumentar a velocidade, o consumo da moto aumentou consideravelmente, obrigando-o a parar em Potrerillos e entrar na cidade para reabastecimento. Mais tarde também ficamos sabendo que havia feito algumas paradas para fotografias. O que explicava melhor o atraso.
Aproveitamos a parada em Mendoza para fazer um lanche rápido à base de cereal e conversar para tentar evitar futuros “extravios” do grupo.
Continuamos andando pela Ruta 7, agora mais forte e, pela primeira vez, entramos no ritmo que eu imaginava para prova. Uma velocidade de cruzeiro de 140km/h, seguidos pelo Alcio e Valmor mais atrás. A estrada estava ótima e permitia andarmos em boa velocidade com segurança.
Nas imediações de San Martin, os veículos, em sentido contrário, passam a dar sinal de luz. Diminuí a velocidade imaginando ser uma barreira policial. Adiante nos deparamos com muitos veículos e carros policiais parados no acostamento à direita da pista, e alguns policiais sinalizando. Passamos lentamente e avistamos um carro que saiu da pista e chocou-se com um poste na faixa de domínio. Imagino que não sobrou ninguém para contar ou escrever história. O carro simplesmente partiu ao meio, só percebemos algumas lonas plásticas características para cobrir vítimas fatais. Já enfrentei desastres chocantes quando atuava no policiamento rodoviário e mesmo em outras viagens pelo Brasil. Mas cada um é diferente, envolve outras pessoas e outras circunstâncias, e isso acabou mexendo comigo.
Em uma viagem de aventura, de desafio, de resistência e com tempo máximo, esses acontecimentos levam-me a viajar por outras rutas, as das lembranças. E aí surge aquela inquietude do homem de saber o que é a morte. É tarefa difícil, todos nós tentamos, os cientistas tentam e as várias religiões e crenças tentam explicar, mas o homem não se convence, e segue na sua busca compreender.
Concentro-me na pista e na prova costa a costa da América Latina em 50 horas, e, pelo retrovisor, só consigo ver a moto do Alcio. Diminuo a velocidade para 120 km/h, isso nas imediações da localidade de La Paz. Ando alguns quilômetros e continuo a não ver o Valmor pelo retrovisor. Encosto a moto em um pequeno refúgio ao lado da pista e faço sinal para o Alcio. Ele me informa que há alguns quilômetros percebeu que o Valmor ficara para trás. Eu pergunto se fez algum sinal, alguma coisa qualquer, mas ele não percebeu nada. Mais uma vez há um Gaudério extraviado pela Ruta 7! Eu não acredito, fico nervoso e irritado, começo a ficar estressado. Pergunto-me, o que fazer? Ficar ali parado, no meio da tarde, naquele calor vigoroso. Voltar e correr o risco de ficar sem combustível ou seguir em frente. Utilizo a técnica de respirar profundamente e não decidir precipitadamente, para não dizer o que quero e o parceiro ouvir o que não quer. Consigo me controlar para manter a serenidade nesses momentos de incertezas, de dúvidas, pois tinha muito presente comigo, que eu não poderia colocar em risco um projeto de mais de ano de espera. Troco ideias com o Alcio e ele concorda em continuar “lentamente” outra vez.
Seguimos tocando pela Ruta 7, e tudo volta à cabeça novamente. Eu lutava comigo mesmo para afastar os pensamentos sinistros, mas, quando se está tenso e estressado, essa luta se torna inglória.
Quando tomo a pista para contornar a cidade de San Luis, para continuar na Ruta 7, percebo que perdi o outro parceiro, fico insistindo em mirar o retrovisor, mas não consigo encontrá-lo. Será! Mais um Gaudério extraviado! Logo que contorno a cidade, surge uma reta longa e acelero forte, eu tinha que fazer alguma coisa, criar uma ruptura para o meu estado de ansiedade, de irritabilidade e de tensão. Eu estava ficando estressado e, no momento, a arma de que dispunha era uma ótima estrada e a potência da possante. Esqueci o combustível e continuei acelerando forte, como quem quer a liberdade agora, fugir da realidade, sentir a pressão do vento no capacete e no corpo. Eu simplesmente buscava manter meu equilíbrio, baixar o estresse e a adrenalina. O estresse, às vezes, pode ser uma proteção, quando faz com que o organismo libere adrenalina e outras substâncias energéticas na corrente sanguínea, pode forçar algumas pessoas a dar o máximo de si e aumentar a competitividade, podendo representar uma grande fonte de motivação. Eu precisava urgente voltar a ter a sensação agradável de pilotar. Sentimento que eu estava perdendo.
Novamente bato o olhar no painel e vejo o marcador do combustível piscando. Em ato reflexo, alivio a mão direita, e a moto reduz rapidamente a velocidade, trazendo, outra vez, aquele ronco gostoso de se ouvir, potente e redondo. Mantenho a calma, sei que teria combustível para mais 70 quilômetros, se pilotasse na manha. Não foi necessário ir tão longe, dois quilômetros adiante e avisto, à esquerda, uma estação de serviço da Shell. Faço o contorno, estaciono a moto ao lado da bomba de combustível. Atende-me um frentista muito alegre e peço para completar o tanque. Resolvo ficar ali esperando os parceiros, não queria mais ficar angustiado, sem saber o que estava acontecendo com eles e atrofiando o meu raciocínio.
Fiquei ali conversando sobre amenidades, motos, etc. com o frentista entre um atendimento e outro que fazia na tentativa de diminuir minha preocupação. Como a estação de serviço ficava à esquerda da via, coloco a moto mais à frente para facilitar a visão dos extraviados.
Passados 20 min, chega o Valmor que, por pouco, não segue em frente sem observar a moto. Acenei escandalosamente com ambos os braços e ele retornou. Relatou que ficou para trás com receio de ficar sem combustível, entrou em um povoado antes de San Luis e comprou cinco litros de gasolina. Eu pergunto sobre o Alcio, afinal, ele andava na frente. O Valmor diz que não passou por ele. Eu fico calado. Mas começo a pensar no pior, uma saída de pista ou coisa assim. A dúvida sempre é um combustível que atrai os pensamentos negativos. Não quero passar minha ansiedade ao Valmor, afinal, ele já havia passado por uma situação de aperto. Mais 10 min de espera e chega o Alcio que, vendo a moto, entra no posto. Quando o vejo inteiro, sinto um grande alívio, parecia um renascimento e digo a mim mesmo: isso tem que acabar, preciso fazer alguma coisa. Mas sabia que precisava manter a união do grupo. O Alcio nos informa que precisou entrar em San Luis para reabastecer. Eu indago por que não me deu algum sinal, poderia ter encostado a moto, feito um gesto. Tudo bem, eu estava feliz novamente. Os Gaudérios estavam juntos outra vez!
Enquanto recolocávamos o equipamento, depois de 35 min que eu estava parado, sugeri que o Valmor passasse a andar na frente porque sua moto tinha a menor autonomia, e ele ditaria as paradas se sentisse que não poderia chegar aos pontos combinados, uma vez que, no trajeto planejado, havia estações de serviço capazes de atender nossas necessidades de abastecimento sem precisar de combustível reserva.
E assim continuamos pela Ruta 7, com previsão de parada em Vicuña Mackenna. Meu planejamento previa sair da Ruta 7, em Mercedes, e seguir a Rio Cuarto, Vila Maria e alcançar Rosário, mas na noite anterior quando ajustávamos os detalhes da prova, os parceiros sugeriram que seguíssemos pela Ruta 7 até Rufino e depois para Venado Tuerto, pois conheciam esse trecho que era muito bom. Aceitei a proposta, pois não alterava significativamente o percurso.
O Valmor, agora na frente, tocava num ótimo ritmo, com uma velocidade de cruzeiro de 150/km/h naquelas retas sem fim, mas em boas condições de segurança. Por ser uma ruta que liga a capital Buenos Aires, a conservação é muito boa. Eu segui, em segundo, o Alcio fechava o grupo mantendo sempre a distância no campo visual.
Chegamos bem em Vicuña Mackenna, abastecemos e rapidamente seguimos em frente. Nesse trecho, conseguimos andar sem problemas, o trânsito não era acentuado, e a temperatura ajudava com o sol batendo as nossas costas.
No próximo trecho, continuávamos nas mesmas posições e na mesma tocada. A estrada era muito boa, sempre com muitas retas e, às vezes, o cansaço tentava abater os integrantes da expedição, os quais resistiam respondendo a uma velocidade capaz de manter firme a atenção dos pilotos. Antes de Rufino, o sol começa a se pôr as nossas costas. Os espelhos retrovisores me mostravam uma paisagem belíssima, com os faróis da moto do Alcio contracenando com um facho de luz dourada com quatro raios formando uma cruz perfeita, no centro de um semicírculo também dourado que se fundia com o céu azul claro e desanuviado. A foto que o “profissional” Valmor fez ficou realmente muito show.
Eu continuava muito concentrado na prova, no controle do tempo, na estrada e, depois da Cordilheira, até acabei me desligando da câmara fotográfica em meio às situações vividas. Mas são ações como essas, de perceber esses momentos, que fazem a diferença em uma equipe. É o velho, mas sempre atual ditado popular que diz: “quatro olhos enxergam melhor que dois”, então seis, é melhor ainda. E, assim, um sempre surpreendia com uma foto espetacular e especial que encantava todos. A natureza está aí, é só ter um pouco de sensibilidade.
A noite chega por volta das 19 h 40 min e logo estamos no entroncamento com a Ruta 33 em direção a Rosario. O acesso a essa estrada está em obras, a noite se apresenta muito escura dificultando nossa orientação e decido solicitar informações para me certificar de que estávamos no caminho certo. Um caminhoneiro nos diz que estávamos corretos. A estrada com bom pavimento e bem sinalizada, não possui acostamento e é semelhante a nossa estrada vicinal, com uma diferença, o asfalto é muito superior. E isso fez com que baixássemos a velocidade para 100 e 110 km/h. Mais que isso seria um risco desnecessário, e o trânsito de caminhões começava a ficar intenso e era mais uma razão para nossa atitude.
Pilotando naquela escuridão absoluta, eu só avistava a lanterna da moto do Valmor à frente, seguindo as marcas brancas no asfalto que delimitavam a pista negra do acostamento gramado ao lado. Ao longe, quase ao centro da pista, nascia a lua timidamente, sem luminosidade, como se levantasse com sono. Era um pequeno e único ponto emergindo da cabeceira da estrada, o céu era negro por completo, e as estrelas deviam estar brilhando em outras galáxias. O visual era de uma lugubridade incomum. Mas aquele nascer da lua, naquele lugar, naquela noite, para mim, era justamente incomum. Ultrapassei o Valmor e sinalizei para uma parada no acostamento. Pedi ao nosso fotógrafo “profissional” para fazer um click da minha moto com a lua levantando da estrada no meio da noite. Mais um sucesso da sensibilidade do Valmor!
Paramos em uma estação de serviço depois de rodarmos 50 quilômetros pela Ruta 33, na localidade de Sancti Spiritu, para reabastecimento, quando o relógio da moto marcava 21 h 30 min. Agora quem ditava essa parada era o Valmor e ele passou a sentir mais confiança e demonstrava menos estresse, mas já reclamava da canseira. Na verdade, todos nós já estávamos cansados. O dia foi muito pesado, com momentos tensos e até de estresse. Eu procurava manter a forma, mas talvez tivesse mais exausto que os dois. Na noite anterior eu não consegui dormir bem. Eu não havia seguido aquela velha e básica dica para os motociclistas: durma bem, procure ter um bom sono, tranquilo e descanse, antes de qualquer viagem. Eu queria ficar 40 horas sem dormir, mas havia dormido apenas 4 horas na noite anterior. Péssimo comportamento, mas, às vezes, antes de uma grande viagem ou prova como essa, não controlamos nosso sono.
Em todo o percurso que já havíamos realizado na Argentina, só fomos abordados pelo policial no primeiro posto, logo na entrada depois da fronteira. Estávamos de bem com os policiais argentinos. Eu continuava a dizer aos parceiros sempre que podia: a nossa expedição saiu de Santa Maria abençoada e tudo continuará dando certo. Eu precisava motivá-los na esperança de dominar minha própria canseira.
Um casal que chega à estação de serviço vem conversar conosco e, depois que fica sabendo o nosso destino, informa-nos que havia um acidente grave logo adiante. Uma carreta transportando soja estava interrompendo a pista, o congestionamento era muito grande e a passagem estava demorando mais de uma hora. Mas havia um desvio permitindo a passagem por um trecho muito embarrado. Não servia para nós.
Resolvemos seguir. Até chegarmos ao local, era possível que estivesse liberada, pelo menos, uma pista, como normalmente ocorre nessas situações. É uma providência básica de qualquer polícia rodoviária. O trânsito tem que fluir com segurança, mas o mais rápido possível.
Ao nos aproximarmos do local, percebemos realmente que o congestionamento era quilométrico e não se tinha a menor ideia de como estava à frente. Começamos a ultrapassar os veículos pela pista da esquerda, sempre que possível, pois estavam liberando os carros leves no sentido contrário. Rapidamente estávamos no local do desastre, onde havia muita soja espalhada na pista. Avançamos com muito cuidado. É quase impossível manter a moto equilibrada sobre uma camada de soja na pista. Utilizamos os trilhos deixados pelos carros, mesmo assim a moto escorregava, tentando sair da mão. Os grãos de soja se movimentam e rolam com muita facilidade na superfície lisa, como o asfalto. No local do desastre, aguardamos uns 10 min e nos foi permitido passar. Na verdade, eram dois caminhões envolvidos no desastre.
A noite continuava escura, o trecho da estrada com pista recapada e o tempo se preparando para chuva, com relâmpagos assustadores permitiam ver as grandes plantações dos campos da região. Estávamos com fome, já fazia algum tempo que não comíamos nada e resolvemos fazer uma parada na cidade de Firmat. O relógio marcava exatamente 23 h 15 min. Entramos no restaurante da estação de serviço o que chamou a atenção dos frequentadores. Eles tinham suas razões, porque três brasileiros motocando naquele horário, realmente, não era um comportamento corriqueiro. Fizemos um lanche leve, eu aproveitei o locutório e liguei para casa dando a notícia de que estávamos realizando a prova da IBA costa a costa em até 50 horas. A Wilma já sabia, mas não gostou muito e não perdeu a oportunidade de, estando do outro lado, ao telefone, dar um punhado de recomendações. Tudo estava bem, e isso me tranquilizava, mas não amenizava a canseira e sono que me abatiam.
O Valmor e o Alcio já manifestavam cansaço. Enquanto eu telefonava, eles ficaram conversando com alguns rapazes que saíram do restaurante para ver as motos, e já tinham obtido informações com os argentinos sobre um hotel no centro. Estes, inclusive, se prontificaram a guiar-nos até o hotel. Decidimos que dormiríamos umas três horas e continuaríamos a prova. Chegamos ao hotel, mas estava lotado.
Com um pouco de dificuldade, encontramos a saída da cidade e pegamos a estrada novamente, na tentativa de conseguir um hotel na próxima cidade ou mesmo em Rosario, pouco mais adiante. Mas eu preferia uma cidade pequena, onde normalmente o acesso é mais rápido.
Eu continuava a controlar o tempo. Olho para o painel da moto e vejo o relógio marcando 0 h 30 min do dia 17/03/2006. Havíamos perdido mais de uma hora à procura de hotel, mas os efeitos da noite mal dormida já dominavam meu corpo. Eu sabia que o mais prudente e sensato era fazer uma parada para tomarmos uma ducha quente e descansar por pelo menos 3 horas.
Segui na frente porque a noite continuava muito escura e o farol da V Strom é muito bom, oferecia mais segurança à expedição. Eu podia sentir que estava chovendo por perto. A nossa direita, os relâmpagos continuavam insistentemente a competir com os faróis dos caminhões que, surpreendentemente, continuavam a rodar naquela madrugada fria.
Chegamos a Cacilda, uma pequena cidade, entramos pela avenida principal e encontramos uma viatura policial. Paramos e perguntamos sobre a localização de um hotel razoável. O policial gentilmente se oferece para nos levar até o hotel. Ele nos guia ao hotel e ainda nos apresenta ao recepcionista, permitindo que permanecêssemos com as motos em fila dupla até ajustarmos o preço. Agradecemos a gentileza e atenção do policial e colocamos as motos na garagem, exatamente à 1 h e 45 min. Enquanto um tomava uma ducha quente, os outros descansavam. Dormimos aproximadamente três horas e meia, e às 5 h estávamos despertando renovados. Não era o suficiente, mas era o possível. Para se ter sucesso nesse tipo de desafio, é necessário renunciar a certos costumes, hábitos e confortos.
Antes das 6 h estávamos retomando a prova e saindo da garagem do Hotel Cacilda. Ainda estava muito escuro, e o recepcionista do hotel nos mostra no mapa a melhor saída, sugerindo a melhor estrada para Rosario. A estrada era nova, sem qualquer trânsito naquele horário, mas não estava concluída e faltava a sinalização completa, o que não nos permitiu recuperar parte do tempo perdido. O dia começava a amanhecer como terminou. No céu as nuvens acinzentadas e escuras se movimentavam de um lado a outro nos dando claro sinal de que não demoraria muito para enfrentarmos a chuva. Naquele momento, nada abalava minha confiança. Sabia que meu otimismo transformava minha fé em ação.
Eu continuava de olho no relógio e fazendo meus cálculos para completar a prova antes de 40 horas. Para mim passou a ser também um objetivo.
Lembrei-me de uma turma de motociclistas experientes que realizaram essa prova, saindo da praia de Tramandaí para concluir o percurso em Valparaiso, com pouco mais de 2.800 quilômetros, em 50 horas, passando por quatro países. Nossa chegada estava planejada para a praia do Cassino, em Rio grande, um pouco mais ao sul, diminuindo o percurso em aproximadamente 400 quilômetros, o que me permitia projetar o máximo de 40 horas.
Passamos por Rosário, contornando a cidade para ganharmos tempo, pois se trata de uma grande cidade, muito bonita, com grandes viadutos, elevadas e sempre com ótima sinalização.
Às 7 h, começamos a andar por uma elevada que dava acesso à ponte sobre o rio Paraná, e a chuva começa a cair sobre nossas cabeças. Na verdade, desde a noite anterior, estava chovendo na região e nós estávamos indo ao encontro da chuva. Logo que alcançamos a ponte que liga Rosario a Victoria, havia uma Praça de Pedágio. Pagamos 4 pesos e 50 centavos para fazer a travessia por uma ponte muito extensa, creio que mais de 11 quilômetros. A chuva começava a ficar forte, fizemos um pit stop técnico para colocar luvas para chuva e polainas nas botas e realizamos algumas fotos para compor o processo que enviaríamos a IBA para homologação da prova.
Nessa parada, foi possível perceber a canseira e a falta de sono do Valmor. As poucas horas de sono não foram suficientes para ele que tem o hábito de dormir bem e ainda sestear após o almoço, mas ele permanecia entusiasmado e disposto a continuar o desafio, e isso faz a diferença quando se busca a reserva de forças não sei a onde, para vencer os desafios e os limites que impomos a nós mesmos.
A pista muito molhada recomendava uma outra postura na pilotagem. Estávamos próximos de alcançar nosso objetivo e não poderíamos cometer erros. Diminuímos a velocidade, como recomendam os manuais de pilotagem e o bom senso.
A Victoria, chegamos com muita chuva e paramos no primeiro posto de gasolina logo na saída para Nogoya na Ruta 26. Já era hora de reabastecer e queríamos tomar um café, uma vez que partimos muito cedo do hotel e nem havíamos cogitado café da manhã. Eu alertava os parceiros que, mesmo que não tivessem com muita fome, que comessem alguma coisa sempre que parássemos, para repor energias ao organismo em razão de uma situação que ocorreu comigo. E aí me lembrei da prova da IBA, Bun Burner 1500 em que eu não tinha fome, fui tocando sem comer quase nada e acabei com uma hiperglicemia na entrada da BR 290 na Free Way. Rapidamente tive que repor boa quantidade de açúcar com muito chocolate. E pilotar nessas condições é um risco incalculável, porque se perdem completamente o controle, o tato, o senso de equilíbrio e a força.
Enquanto tomávamos um caputino com croissant, iniciou a cair um pé d’água provocando uma inundação à volta da estação de serviço. Acabamos por ficar uns 30 min parados em Victoria, esperando a chuva dar uma trégua. Tão logo diminuiu, partimos para a estrada. Agora por uma estrada vicinal, estreita, sem acostamento e com sinalização deficiente. Logo depois da saída da estação de serviço, tínhamos que passar em um entroncamento de rodovias, tipo trevo, com obras e muito barro. O Valmor deu uma escapada e por muito pouco não foi “batizado” no barro.
A estrada, embora com pavimentação regular, apresentava em alguns trechos deformações, provocadas pelo excesso de peso que estamos acostumados a enfrentar nas estradas brasileiras, ao menos no Sul, onde as nossas autoridades maiores não costumam transitar. A chuva continuava e alternavam-se momentos de chuva mansa e de chuva forte, e ventos fortes que dificultavam ainda mais a pilotagem. Isso obrigou o Valmor a parar e diminuir a pressão dos pneus. A moto dele já estava com o pneu traseiro muito desgastado e ele não estava conseguindo pilotar com segurança por falta de aderência, a moto estava “saindo com a traseira” quando passava por trechos com muita água. É importante lembrar que, ao diminuir a pressão dos pneus, se ganha em aderência, o desgaste do pneu é maior e de forma irregular, mas, naquelas condições de pista e com o pneu traseiro já muito desgastado, entendo que o procedimento para a situação foi a mais correta.
Entre Nagoya e Rosario del Tala, a chuva não deu trégua por um minuto sequer. Mas precisávamos continuar a ganhar estrada, o tempo estava passando depressa demais. Cada vez que eu olhava o relógio, projetava os próximos trechos, sempre contando com que a chuva diminuísse. Eu me revezava com o Valmor na frente. Conseguimos manter uma velocidade entre 110 e 120 km/h. A viagem ficou melhor, mesmo na chuva, ao menos, para mim. O grupo estava viajando junto a um tempo sem problemas de distanciamentos e isso aumenta nossa confiança.
Quando estava em Iquique, no Chile, acompanhei o noticiário que dava conta de que havia um bloqueio de estrada na divisa da Argentina com o Uruguai, na região de Gualeguaychú e que se estendia até Concordia. Eram protestos contra a instalação de uma indústria, e eu, em cada posto policial que encontrava na estrada, buscava informação sobre a situação de passagem. Alguns não sabiam e indicavam o posto mais à frente, e assim eu fui.
Antes de chegarmos à localidade de Basavilbaso, já na Ruta 39, a chuva novamente recrudesce e precisamos andar mais devagar para manter nosso estado de segurança em bom nível. Os pneus traseiros das motos estavam com acentuado desgaste e não ofereciam a segurança necessária para andar na chuva. Eu mesmo dei duas desgarradas em uma curva que não era acentuada. É muito fácil perder o controle da moto nas curvas, principalmente quando há muita água na pista e o pavimento é liso. Foram dois sustos que me fizeram refletir e baixar a velocidade.
Poucos quilômetros depois de passar o povoado de Herrera, alcançamos a Ruta 14, muito conhecida dos brasileiros por circundar a divisa com o Brasil. Altera-se a configuração da pista, que passa a ter acostamento, fica mais larga e permite andarmos mais rápido. Era tudo que queríamos, andar mais rápido aproveitando que havia parado de chover. O tempo continuava feio, cinzento, daqueles típicos do inverno no Sul, e o trecho rodado nessa estrada foi muito curto e logo estávamos chegando em Colón, na divisa com o Uruguai. Começo a pensar sobre as condições para passagem na fronteira com o Uruguai. Tínhamos a informação da Polícia Argentina, mas isso ainda me preocupava, pois seria um grande problema não poder passar. Um dos nossos objetivos seguramente não seria possível atingir. Tento desviar o pensamento para o momento da chegada ao Cassino, da recepção dos irmãos e amigos de estrada. Penso na chegada em casa, na saudade da família, mas é muito difícil controlar os sentimentos, eles vão chegando e não temos controle.
No acesso para Colón, deparamos-nos com uma forte barreira policial e com a pista interditada. Logo que avisto aquele aparato com policiais fortemente aramados, pergunto-me. Será que a bênção de nossa viagem acabou? As informações dos policiais dos outros postos não poderiam estar erradas, eles sempre me pareceram convictos em afirmar que estava sendo permitida a travessia na fronteira. Se não conseguíssemos passar naquele ponto, provavelmente teríamos que rodar mais uns 400 quilômetros para entrar no Uruguai. Parei a moto e perguntei como estava a passagem para a cidade de Paysandu ao policial que se aproximava do grupo. O policial me respondeu que não havia problemas para motos e pedestres, poderíamos seguir em frente. Foi um grande alívio e credito aos policiais argentinos bem informados que nos orientavam pelas estradas.
Só agora entendo, o bloqueio visava aos carros e caminhões, nós estávamos de moto, por isso os policiais diziam que a fronteira não estava bloqueada. A resposta dependia do tipo de veículo que você estivesse viajando. Felicidade geral! Passamos a barreira e paramos na estação de serviço, à direita, antes da ponte. Era abastecer e fazer um pequeno lanche. O céu continuava com muitas nuvens escuras e, segundo o frentista, já chovia na região fazia dois dias.
Retiro as polainas das botas e recoloco as luvas de couro para pilotar com mais conforto, quando o relógio marcava 9 h 50 min. Os cálculos a essas alturas surgiam a todo o momento na cabeça. Tínhamos mais 12 horas para percorrer os 800 quilômetros até a chegada à praia do Cassino, para cumprir o objetivo de fazer a prova em 40 horas, incluindo as duas fronteiras e dois reabastecimentos. Parece muito tempo em relação a distância, e até pode ser quando se tratar de uma viagem normal. Mas nós estávamos rodando desde as 6 h do dia anterior e a canseira e o desgaste físico não se recuperam sem um bom período de sono. Começamos a perceber que estávamos cansados quando as paradas passam a ficar mais longas. Era o que ocorria conosco, a cada parada, mais tempo. Inconscientemente adotávamos posturas para permanecer mais tempo no local e isso era evidência clara do desgaste físico. Para compensar o bom astral, torna-se importante revigorar e manter a confiança em concluir o desafio. Eu coloquei, as 40 horas propositalmente, como meta para termos uma consistente e tranquilizadora reserva. E 10 horas sempre será uma ótima reserva para esse tipo de prova.
Mas era preciso andar, eu não estava satisfeito e queria andar e chegar. Só não pensei, jamais, em parar e desistir. A estratégia de fazer a prova voltando para casa estimula o motociclista a seguir em frente e nunca retroceder. Não tem sentido nem lógica. Penso que foi uma decisão acertada.
Já haviam passado 30 min da parada, quando seguimos em direção à divisa. Encontramos, antes da ponte em mais dois carros, alguns policiais conversando tranquilamente e a rodovia bloqueada com madeira, árvores, pneus e toda sorte de quinquilharias e um piquete de manifestantes tomando chimarrão. Fomos avançando vagarosamente e passamos por um corredor estreito que permitia somente a passagem de pessoas, motos e bicicletas. Ninguém nos abordou ou fez qualquer sinal. Passamos, e eu gritei bem alto. Obrigado, Supremo Criador! Eu tinha o direito e o dever de comemorar. Ultrapassamos um complicado obstáculo de percurso.
Parei na cabeceira da ponte internacional Gral. José G. Artigas para fazer uma foto. Em razão da chuva, da canseira e atraso, acabei esquecendo completamente de registrar provas através de fotografias em alguns lugares importantes como placas de entrada de cidades e pontos turísticos típicos. Fotos também são necessárias para complementar o processo a ser remetido à IBA.
Atravessamos a fronteira e chegamos à aduna integrada dos dois países no lado uruguaio. No setor argentino, entregamos uma papeleta, carimbamos o passaporte e estávamos liberados. Nada surpreendente. Com o tráfego fechado para carros e caminhões, o movimento caiu quase a zero. Bom para o motociclista, mas péssimo para os trabalhadores que precisam fazer a travessia da fronteira.
Essas questões de bloqueios de estrada, sabemos todos, são muito controvertidas. Quando implica atingir e restringir o direito de ir e vir das pessoas não envolvidas na controvérsia, torna-se difícil concordar com tais posturas, por mais justos que sejam os motivos.
Na repartição aduaneira de entrada no Uruguai, igualmente, não perdemos tempo. Preenchemos um formulário, carimbamos o passaporte e logo estávamos rodando em rutas uruguaias.
Da divisa fronteiriça, Colon na Argentina e Paysandu no Uruguai, até nossa próxima parada em Tacuarembo para reabastecer e fazer um lanche, seriam 231 quilômetros pela Ruta 26.
Logo que passamos a cidade de Paysandu, a chuva parecia que nos pouparia no território uruguaio, embora o céu continuasse nublado, o que torna a viagem mais agradável e confortável para pilotar. A temperatura estava amena, e o trânsito na estrada era insignificante, com as retas surgindo novamente a nossa frente como se pedindo que voássemos baixo naquele tapete recapado recentemente. E como esse tipo de convite não se recusa, pensando que já estávamos quase em casa, acelerei forte para que os parceiros me seguissem de perto. Era uma boa oportunidade de recuperar alguns longos minutos que perdemos no percurso. Mantive a velocidade um pouco mais elevada que a permitida, por um bom tempo. A pista permitia muito mais, mas a canseira do grupo era um fato e não queríamos correr risco na chegada.
Ao se andar no Uruguai, a paisagem se altera completamente. Rodávamos agora por uma reta que corta a pampa uruguaia com plantações se revezando com grandes rebanhos de gado nas pastagens naturais por longos quilômetros que alcançam a linha do horizonte. Senti-me no Rio Grande, era como estar andando no pampa gaúcho e no meio da nossa gente. É verdade! Sim, já era sinal da saudade que dissimulávamos tentando manter a concentração e foco na estrada, porque o coração e o corpo estavam combalidos pelo tempo e pela esfrega da prova.
Aquela estrada de muitas retas e a verde paisagem sem fim começam a ficar monótonas para quem está viajando há mais de 33 horas e, da clausura do capacete, o pensamento emerge para relembrar as muitas experiências vivenciadas.
Quando me dou conta, estamos chegando a Tacuarembo, localidade muito conhecida dos motociclistas brasileiros por ser um ponto de passagem obrigatório. Realizamos mais um abastecimento e eu acabei tomando um café e comendo uma barra de cereal, pois já começava a sentir os efeitos do sono, com minhas pálpebras cansadas e pesadas, pedindo socorro. O café não foi suficiente e tive de colocar muita água fria no rosto e nos olhos para me manter alerta.
O moral do grupo parecia estar nas alturas, estávamos quase comemorando nossa vitória, sabíamos que faltava pouco e nos sentíamos com energia e vontade de vencer. Todos nós, com naturalidade, demonstrávamos uma alegria incontida que surgia do sentimento interior de cada um, com sorriso largo, sincero e de pura felicidade.
Às 15 h 25 min, partimos para fazer a última fronteira e, então, entrar novamente no Brasil por Santana do Livramento.
O trecho de pouco mais de 100 quilômetros fora vencido rapidamente. A estrada já era muito conhecida e mantida sempre em ótimo estado, permitindo-nos manter uma ótima velocidade, sempre cortando os lindos campos, característicos do Uruguai. Havia alguns policiais da Policia Camiñera ao longo do trecho, mas não fomos abordados por nenhum deles. À medida que nos aproximávamos do Brasil, a temperatura começava a ficar elevada, aumentando a sensação de canseira. Mas cada quilômetro que rodávamos na direção de casa (Brasil), parecia que se transformava em combustível que repunha nossas energias.
Na aduana integrada de Rivera, no lado uruguaio, não havia movimento algum, foi só entregar o permiso, carimbar o passaporte e entramos no Brasil. Atravessamos a simpática cidade fronteiriça e estávamos no Brasil. Como é bom estar no Brasil depois de 22 dias. É uma sensação muito gostosa, de saudade, de aconchego, de segurança, muito típica de um filho voltando para casa depois de uma longa ausência. Ali, mesmo cansados, parecia que tínhamos conquistado nosso objetivo, tamanha era nossa alegria de estar novamente rodando em solo brasileiro e, nesse momento, só penso nas coisas boas que possuímos, nas nossas virtudes, até parece que não temos nossas mazelas. Todas elas desaparecem, é só felicidade.
Realizamos uma parada para o Valmor abastecer já na saída da cidade, no posto de serviço Ipiranga. A temperatura, em Santana do Livramento, seguramente estava acima de 30ºC e rapidamente retornamos à estrada. Agora eu já estava confiante de que conseguiríamos cumprir nosso objetivo de completar a prova em 40 horas.
Na BR 158, rodamos cerca de 40 km até o entroncamento com a BR 293, onde entramos em direção a Bagé. Nos primeiros quilômetros da pista, é possível manter a mesma velocidade de cruzeiro, mas próximo a Dom Pedrito começa a aparecer a buraqueira, e imediatamente temos que reduzir a velocidade a menos de 90 km/h. O trecho foi muito cansativo, perigoso e acabou por minar ainda mais o nosso estado físico que, a essas alturas da prova, mantínhamos pela determinação e vontade de chegar de cada um.
Logo que passamos o município de Dom Pedrito, eu paro a moto no acostamento, seguido pelos parceiros, que se surpreendem quando digo que parei para fotografar as placas de sinalização indicativa suspensas sobre a pista. Uma indicando as distâncias das cidades de Bagé, Pinheiro Machado e Pelotas. A outra educativa, com a inscrição “Proteja as placas de sinalização”. Quando as avistei, percebi que estavam completamente enferrujadas, tortas e quase caindo, imagino que foram colocadas quando da inauguração da rodovia na década dos anos 80, sobreveio-me a vontade de registrar aquele completo e irresponsável descaso das autoridades que se dizem competentes para com a segurança de nossas rodovias. Uma situação contraditória e de descaso. A autoridade sobre a via solicitando para preservar as placas de sinalização, se ela própria não às conserva com manutenção devida em razão do natural desgaste pelo tempo.
Sabemos todos que situações como essas se repetem por muitas estradas brasileiras, mas a minha reação foi impulsiva e quase reflexa, queria poder demonstrar aquela contradição governamental. Vou ficar só no exemplo das placas, porque com relação às estradas como um todo, penso que o Sul dispensa comentários. Basta viajar, de moto, de carro ou caminhão.
Mais 67 quilômetros e chegamos a Bagé para realizarmos nossa última parada para reabastecimento. O sol forte começa a dar um refresco e compensa um pouco a canseira pela irregularidade da pista.
Entramos na Avenida Santa Tecla, acesso principal à cidade, para encontrar um posto de serviço. O relógio marcava 19 h 20 min. Faço os meus cálculos rotineiros e constato que esse trecho da BR 293 foi péssimo em termos de tempo. Rodamos apenas 133 km para um tempo de quase duas horas, mas observo aos parceiros que ainda era possível chegar antes das 40 horas. O frentista do posto nos reporta que a estrada até Pelotas está em ótimas condições e isso me anima muito. Tirei um chiclete do bolso e começo a mascar, sei que no trecho da noite ele me será muito útil se o sono bater.
Partimos para a vitória! Novamente na BR 293, passamos por um posto da PRF e voltei a acelerar forte, para aproveitar os últimos minutos do glorioso sol como um manancial de energia que é, e renovar a alma e o corpo. Não demoraria muito e ele sumiria no horizonte, agora na pampa gaúcha. Mas eu estava muito agradecido pela sua quase integral companhia durante nosso desafio, e isso estava sendo fundamental para nosso sucesso.
Próximo a Pinheiro Machado, pegamos a noite que surge muito escura e diminuo a velocidade. Inicia-se um trecho de estrada com muitas curvas, na maioria de alta velocidade, com vento forte e frio que ora soprava nas nossas costas, ora pela lateral, deixando a pilotagem um pouco difícil. Estava exigindo muita atenção e nós estávamos realmente cansados, o que tornava a condução da moto muito perigosa naquelas curvas. Apesar dessas dificuldades, a estrada era ótima e, na maior parte do tempo, consegui manter boa velocidade. Esse trecho até Pelotas foi um dos mais difíceis e eu passei a ter dificuldade para manter os olhos abertos, parecia que havia areia nos meus olhos e, quando ofuscados pelos faróis dos veículos em sentido contrário, era quase uma tragédia. Eu precisava fazer movimentos fortes de arregalar os olhos para mantê-los abertos e caretas para manter ativos os músculos da face, pois, para felicidade de todos, eu estava protegido pelo capacete, numa estrada escura e quase sem movimento. Foram momentos penosos que me exigiram muita concentração e vontade de chegar.
Passei a acelerar um pouco mais forte, induzido pela ânsia de querer sair logo daquele trecho. A canseira começa a dominar minhas ações para chegar logo ao ponto final. Ela era muito mais mental, sentia meu raciocínio mais lento, voltava a fazer caretas e mascar forte o chiclete para me manter esperto. Observo no retrovisor e avisto somente a moto do Alcio na minha retaguarda. Foi um susto. Instintivamente tirei a mão do acelerador. Passei a andar mais lento e o Alcio a me seguir, mas comecei a ficar preocupado, ninguém me sinalizou qualquer emergência enquanto eu tentava dominar e vencer meu sono. Logo avistei as luzes da cidade de Capão do Leão e o Alcio a me seguir.
Na entrada da cidade de Pelotas, não consigo continuar a pilotar sem avistar o Valmor. Eu não queria passar novamente pela mesma angústia do dia anterior e já começam a surgir as dúvidas cruéis e decido parar. Acabei parando inclusive em um lugar não muito adequado do ponto de vista de segurança. Fui chamado a atenção pelo Alcio e re-posiciono a moto no acostamento atendendo a sua correta observação. O Alcio diz que o Valmor foi ficando para trás, mas não sabia precisar onde. Eu procuro manter a calma e não pensar no pior. Pouco menos de 10 min e surge uma luz isolada na estrada. Acionamos o pisca-alerta das motos e ficamos na torcida para ser a motocicleta do Valmor. E era. Mais uma falha do grupo, dessa vez, penso que todos têm uma pequena parcela de responsabilidade.
Mas vamos deixar de lado, já abordei situação semelhante anteriormente. O Valmor estava muito cansado, o vento forte dificultava sua pilotagem, e o pneu traseiro quase liso e “quadrado” não lhe oferecia a necessária confiança para fazer curvas mais fortes. Estávamos quase lá, no ponto de chegada. Cassino!
Peço ao Valmor que passe à frente. Fico na retaguarda. O trânsito de caminhões na BR 392 é intenso e não conseguimos manter uma boa velocidade. Começo a olhar o relógio e fazer os cálculos quando faltavam menos de 40 quilômetros. Quando realizamos o contorno e passamos da Quinta, eu já comemorava só em meus pensamentos e fazia os meus agradecimentos aos anjos e ao Supremo Criador que nos guiavam desde nossa partida. Era meu momento de fé e minhas crenças.
Passei à frente para orientar o grupo antes do acesso à praia do Cassino e ingressamos na RS 734. Estávamos a 12 quilômetros do objetivo. Era conduzir na ponta dos dedos, não tinha sono, canseira, fome, sede ou dor que nos tirasse aquela vitória. Na verdade, parecia que estávamos guardando um fôlego extra para aqueles momentos do sprint final.
Passei a rodar em pé na moto a 40 e 60 km/h para sentir o vento frio da maior praia do mundo. Abro a viseira do capacete, quando me aproximo do Cassino, quero que o vento úmido do mar mantenha meus olhos abertos, aciono meus radares sensitivos para rastrear a presença de um grande irmão e amigo motociclista que estaria a nos esperar e não demoro muito para avistá-lo na avenida de entrada do Cassino. Consigo me conter para não gritar de alegria, de contentamento e de felicidade por mais uma conquista, mas buzino muitas vezes para saudar o irmão Miguel, que, às 22 h 28 min lá estava para nos dar as boas-vindas, testemunhar a nossa chegada e a conclusão da prova costa a costa, do Pacífico ao Atlântico.
A vitória estava selada, tínhamos o direito de comemorar e de extravasar nossa alegria. A força para isso? Busca-se não sei aonde, mas sempre a encontramos, dentro de nós e nas palavras de verdadeiros amigos e parceiros de viagem.
Nós chegamos! Nós vencemos mais um grande desafio! Nós superamos o cansaço, o sono e alguns perigos! Os amigos Gaudérios, Alcio e Valmor, já podiam dizer-se que eram os mais novos vencedores da Iron Butt Association, LA – 50cc.
O Miguel passa à frente do grupo com sua Biz “guerreira” fazendo um justo e verdadeiro bailado para nos saudar e nos guiar até o posto de serviço da Ipiranga, na avenida principal, acompanhado, de perto, pelo amigo e motociclista Gustavo. A nossa recepção foi muito calorosa, atenciosa e vibrante. Muitos abraços, muita comemoração e rapidamente abastecemos as motos para juntar a prova do horário da chegada, 22 h 33 min, e dados das testemunhas.
Não faltou a cervejinha gelada na comemoração que teve muitas fotos, com as bandeiras dos Gaudérios do Asfalto e a do Moto Clube Bodes do Asfalto.
Foram 2.377 km em 39 h 35 min. Sucesso do planejamento e perfeito comportamento das motos. A possante V Strom, então, nem se fala! Muito conforto, potência e confiança.
A comemoração continua. Deslocamo-nos até o final da Avenida Rio Grande, à beira-mar, para registrar com fotos a nossa chegada junto à imagem de Iemanjá para os umbandistas e Nossa Senhora dos Navegantes para os católicos. Com o braço esquerdo levantado e a mão segurando o capacete bem ao alto, aquele mesmo que protegia meus pensamentos pelas rutas do Cone Sul, abracei os amigos de viagem para registrar mais um objetivo alcançado, mais uma conquista.
O atencioso irmão Miguel já havia reservado o nosso jantar na Peixaria do Silva e nos levou para comer uma anchova assada regada a cerveja. Na verdade, pegamos leve com a cerveja porque estávamos cansados e com sono, qualquer exagero poderíamos ir a “nocaute” ali mesmo.
Ficamos por mais uma hora com um papo muito legal e fraterno, conversando sobre a viagem e a prova da IBA, para que rapidamente tentássemos passar as nossas impressões, sobre alguns momentos importantes vivenciados, ao irmão Miguel Schabbach e ao filho Thiago.
Começamos a sentir que estava na hora de ir para o “berço”. Os efeitos da viagem eram visíveis e não queríamos abusar da hospitalidade do Miguel. Mas ele insiste em nos acompanhar até ao Hotel Atlântico onde ele havia reservado hospedagem para o grupo. Aí foi cair na cama dormindo. E assim foi até as 10 h 30 min do dia seguinte.
Depois do café saímos até a frente do hotel e lá estava o Miguel com seu irmão Carlos (Neco), os amigos Vinhas, parceiros de infância do Valmor, o Mário e o Capitão Marcelo Vieira, da Polícia Rodoviária Estadual, a nos esperar para tomar um chimarrão. São gestos que podem ser pequenos e simples, mas que contam muito. Eles nos marcam e nos fazem perceber que somos importantes. Toda essa sensibilidade e gestos de carinho ficaram impregnados em todos nós.
Mais alguns registros na frente do hotel e começa a cair uma garoa fina. Ligamos para casa para informar que estávamos saindo de Rio Grande. Despedimo-nos dos amigos e partimos, agora, para encontrar a família e concluir a viagem. O reencontro familiar sempre é um momento especial, de pura e deliciosa emoção, especialmente depois do sucesso de mais um desafio.

Por Renato Lopes, do livro Pelas Rutas do Cone Sul, 2007.

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